18 abril 2011

apenas como mulheres

Paulo Cezar Filho para mim

mostrar detalhes 19/07/10

Doriana tem apenas oito anos de idade e então você se pergunta, que diabos uma menina de oito anos sabe a respeito da vida? Bem, meu caro, Doriana certamente sabe de muitas coisas, a primeira delas que, aliás, é por onde começa essa estória é que a menina sabe que para ir até a casa de sua avó ela tem que pegar o ônibus 604 e não o 619, mas esse é apenas um pequeno e quase inútil exemplo, Doriana conhece uma porção de outras coisas.
- Para onde vai minha jovem?
- Para a casa da minha avó.
- Qual o seu nome?
- Doriana e o seu?
- Jesus.
- Jesus Cristo?
- Não, Jesus Andaluz.
- Quer um pedaço de bolo Jesus Andaluz? – a menina então pergunta abrindo a tampa de uma enorme cesta de vime que trazia no colo.
- Isso deve estar uma delicia, é claro que quero.
- Toma, fica com esse maior – estende um pedaço grande de bolo todo enrolado em papel alumínio.
- A propósito minha jovenzinha, você por acaso não quer dar um pulo até a minha casa, tenho adoráveis brinquedos por lá.
- Bem que eu gostaria, mas hoje não posso e além do mais a casa da minha avó é logo ali – a menina responde tocando a campainha do ônibus – De qualquer maneira, obrigada pelo convite e até outro dia.
- Até outro dia docinho, obrigado pelo bolo.

Doriana chega na casa de sua avó, um apartamento de quatro andares na Vila Mariana, carrega a cesta com os pedaços de bolo cuidadosamente cortados em cubos enrolados em papel alumínio. Chama a velha pelo interfone que pacientemente desce seis lances de escada e quando abre a porta Doriana prontamente lhe estende os bracinhos envolvendo-a num abraço e beijinhos de chocolate estalados.
As duas sobem as escadas e no caminho Doriana presenteia sua avó com um pedaço de bolo enquanto conta sobre coisas que tem aprendido na escola.
- Para que servem óculos tão grandes vovozinha? – a menina aponta para a escrivaninha já dentro do apartamento.
- Para enxergar melhor – a velha responde cuspindo pedaços de bolo no tapete da sala.
- Enxergar coisas pequenas?
- Não, para enxergar coisas grandes, bem grandes, quer ver só uma coisa? – a velha puxa Doriana pelo braço, as duas cruzam o pequeno cômodo até a janela.
- Veja só que maravilha.
- O quê é isso vovozinha?
- Um binóculo.
- O quê a senhora está vendo nele?
Doriana então apanha o binóculo e olhando através das lentes consegue ver as janelas dos apartamentos vizinhos e o que acontece dentro de cada cômodo desconhecido.
- Então é isso que a senhora enxerga.
- Isso mesmo, a vida dos outros, não é incrível?
Doriana, no entanto, da de ombros demonstrando pouco interesse.
A velha entusiasmada corre até a cesta de bolo e começa a revirá-la tentando encontrar o maior pedaço de todos, mal reparando o desanimo em sua neta.
- Vó?
- O quê é?
- Tinha um homem estranho dentro do ônibus quando vim para cá.
- Estranho? Como assim?
- Não sei, tinha orelhas enormes e dentes pontiagudos, acho que vai morrer muito em breve.
- E como é que você sabe que ele vai morrer muito em breve?
- É por causa do bolo, ele comeu um pedaço inteiro.
- E o quê tem isso?
- O recheio.
- O recheio? – a velha mantém suspenso outro pedaço do bolo que trazia à boca.
- É, o recheio, coloquei caco de vidro moído junto com o chocolate.
- Como? – os velhos olhos esbugalham-se e a boca abre num vinco trêmulo, nem tem tempo de levar a mão à barriga, desabando no piso frio de ardósia da cozinha.
Doriana faz de conta que nada percebe.
Ajeita o capuz vermelho por cima da cabeça apanha o binóculo e vai até a janela, depois começa a bisbilhotar, casa por casa, a vida dos vizinhos...


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